domingo, 16 de abril de 2017

Urg, parte I

E ela criou seu clone. Não porque queria que esse outro ser fosse idêntico, mas porque era só essa possibilidade que havia.

Foi necessário um dia meditando. Enquanto seguia algumas instruções que enviaram por PDF. Fez tudo corretamente e seria estranho se não fizesse. A tarefa era relativamente simples e não exigia muito a não ser um pouco de paciência. No final do dia, lá estava.
Era idêntica. Era idêntica, mas... Hum.

Achou dar nome desnecessário. Foi direto ao assunto: a casa precisava de um trato. Roupa e louça pra lavar, coisas para arrumar, chão pra varrer e havia perdido um lápis de olho. Vasculhe tudo e ache, ela disse.

O clone, recém-chegado por aquelas terras, já vinha com bastante informação. Foi até a cozinha porque sabia onde era e obedeceu porque o tom na voz daquela outra pessoa era algo difícil de não acatar. E enquanto lavava a louça, foi pensando sobre o que estava acontecendo. Sentiu um ímpeto forte de chorar, mas não entendeu porquê.

Depois foi para as roupas. Calça jeans preta. Gostou, pensou que usaria uma daquela. Cintura alta. Enquanto jogava tudo na máquina, pôs a mão na própria cintura. Tentava entender se aquilo era dela. Parecia fazer sentido que sim.

O que faria após fazer aquelas atividades?

Pensou em dizer alguma coisa, mas não sabia porque havia pensado isso. E ninguém havia lhe perguntado nada.

E o que poderia dizer?

Olhou ao redor. A máquina batia a roupa. O cachorro comia uma ração com desespero e desgosto ao mesmo tempo. As meias estavam estáticas. Tudo tinha um formato muito diferente do que sentia e percebia em si: tinha pernas, braços, cabeça.

 Era uma outra coisa.

Espiou o outro cômodo. Aquela pessoa, tinha pernas e braços como ela. Mas estava deitada em um sofá, vendo televisão. Observou um pouco. Mas logo sentiu uma sensação, uma espécie de aviso para que não ficasse ali.

Voltou para suas atividades. E terminou com certa agilidade.

Ficou parada no meio da cozinha limpa. Não pensava em nada, apenas estava ali, assim como uma cadeira ou o balcão da pia. Ficou bastante tempo imóvel, até que sentiu dormência no corpo. Se moveu e doeu. Então voltou a ficar parada. Mas não conseguiu se manter de pé, pelo cansaço. E sentou no chão. O movimento gerou uma dor forte. E então exprimiu sua primeira comunicação com o mundo:

- Urg - disse, num tom agudo.

A pessoa ouviu. Se levantou do sofá e foi até a cozinha. O cachorro correu pro outro lado. Urg pensou em fazer o mesmo, mas não conseguiu. Ficou parada e olhou fixamente. A pessoa olhou de volta, mas foi por segundos. Estava mais era observando o trabalho feito. Deu especial atenção para os copos. E observou que, no fundo, não estava bem limpo.

Então, fazendo uma careta e exprimindo onomatopéias de enfado, começou ela mesma a lavar, novamente. Prestando atenção em qual era a melhor maneira de fazer. Até que entendeu que, se girasse a esponja algumas vezes no fundo do copo com a ajuda de um cabo de talher, o copo ficaria bem limpo.

Terminou, lavou as mãos e voltou para a TV. Urg ficou ali, olhando. "Braços e pernas esfregam copos", pensou.

Urg esperou que algo acontecesse. Olhou para as próprias pernas. E pensou no que aquelas outras estariam fazendo. Talvez fosse esse o próximo passo.

Então, espiou novamente o outro cômodo. A pessoa estava entre esticada e encolhida. Parecia relaxada. De olhos fechados. Algo em Urg sinalizou que aquela pessoa estar de olhos fechados era bom. E então, entrou no cômodo. E sentou no sofá. A sensação foi magicamente agradável. Aquilo não era como o chão. Aquilo aceitava o formato do seu corpo e parecia ser feito para receber alguém. Alguém como ela.

Urg olhou a pessoa. Copiou a forma como estava deitada: perna direita semi dobrada, esquerda esticada, costas curvadas, queixo junto ao peito e braço dobrado, apoiando a cabeça.

E fechou os olhos. E ficou lá, atrás deles, aguardando acontecer alguma coisa. Passou um tempo e aconteceu: como uma possessão, de repente sentiu vontade de apenas estar ali, imóvel. E sentiu que aquela sensação a puxava para um outro estado, um estado inativo, agradável. Sentiu algo ruim, sentiu que aquilo poderia ser ruim pra ela. Sentiu medo. Mas não abriu os olhos.

Logo, mesmo tentando lutar contra aquilo, dormiu.

Urg e a pessoa dividiam o mesmo sofá-cama. Algumas horas se passaram. A pessoa começa a se mover, fazendo menção de acordar.

2 comentários:

Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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