sábado, 19 de março de 2022

Múltiplo (05/07/2017)

Ele acordou, coçou o olho e saiu pra rua, como se estivesse sendo expulso de casa. Chegou na calçada, viu as pessoas transitando. Achou que estava sonhando, mas era isso mesmo: todas as pessoas na rua eram ele. Todos voltavam do mercado com os mesmos itens na sacola de compras, estavam com a mesma roupa e andavam do mesmo jeito. Também não o cumprimentaram quando passaram por ele, como ele mesmo faria. Se sentiu extremamente mal. Foi trabalhar, do jeito que estava, em desespero, sem olhar para os lados, desviando de tudo. Teve a impressão de que tudo se desviava também. Chegou no trabalho, já havia alguém sentado em sua cadeira. Ele mesmo. E já havia alguém tomando seu café, no outro cômodo, que era o que fazia quando a passagem até sua mesa estava obstruída. Havia até ele mesmo fumando um cigarro, que era o que fazia quando não tinha café. Tentou correr para algum lugar onde não houvesse ninguém, mas ele preenchia tudo e tudo era sua imagem e semelhança. Tudo se movia, pensava do mesmo jeito. E assim, ele não tinha mais espaço na própria vida, apenas um papel secundário, de um coadjuvante que faz o que é esperado dele: existir, de acordo com sua própria norma. Uma transgressão seria uma traição a si mesmo. Então, sentindo uma agonia descontrolada, tentou não pensar e agir como um bicho. Correu em direção a uma ponte e uma multidão correu com ele. Ele pulou, caiu de cabeça. O pescoço foi comido pelo asfalto e a cabeça virou um purê, em baixo da costela que se dobrou em "L" e atravessou sua bacia. Então, sentindo uma agonia descontrolada, tentou não pensar e agir como um bicho. Correu em direção a uma ponte e uma multidão correu com ele. Ele pulou, caiu de cabeça. o pescoço foi comido pelo asfalto e a cabeça virou um purê, em baixo da costela que se dobrou em "L" e atravessou sua bacia. E essa situação se repetiu em cadeia, como uma faísca perseguindo uma trilha de pólvora, dizimando a população de uma mesma pessoa da mesma forma, estourando seus miolos um a um ponte abaixo. A visão final foi um rio de sangue, ossos e miolos, sem nenhum expectador para conjecturar em cima sobre o suposto milagre que diziam ser a vida. Mas houve a exceção. Uma parte dele se conteve e olhou para a carnificina, indiferente. Como ele olharia. E foram para casa prosseguir com suas vidas e horários, pois era domingo, pois era segunda, pois era sexta, pois era sábado.

Um comentário:

Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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