sábado, 19 de março de 2022

Condição

Saiu do trabalho. Entra no mercado com 40 conto. Ficava puta consigo mesma que sempre ia só quando já tava sem nada em casa. E pensando bem, era assim com tudo: comprava tênis só quando rasgava a sola, celular só quando o conserto ficava mais caro que comprar outro, a passagem só quando já estava voltando. Ir no hospital então, só se já tivesse era morrendo.
Pois bem. Desde a pandemia de 2019 pra 2022, tudo aumentou muito de preço. Antes tava caro, agora tava era tudo valendo ouro. Fez uma lista pra não esquecer de comprar nada, mas claro que esqueceu o porra da lista. Vai de cabeça mesmo. E vai esquecer alguma coisa, óbvio.
Em casa de rango só tinha arroz e limão. Precisava de sabão em pó, açúcar e sal. Sabonete. Pasta de dente. Uma carninha, quem sabe? Ovos, leite e pão. Tempero acabou também, não ia rolar não. Na memória vinha uma lembrança longe de que tinha mais alguma coisa. Certamente ia lembrar só em casa. Memória filha da puta. Ela quem faz a seleção de prioridade. Pegou uns itens. Só no ovo, leite e pão já morreu vinte e cinco conto. Dava raiva de tudo ser perecível, isso não deveria mais existir. Dois dias acaba o leite e o pão. E em 10 minutos acabariam 40 conto. 
Passa no corredor dos enlatados. Um cara com uma garrafa de óleo pergunta:
- Moça, não quero pedir dinheiro não, quero comida mesmo. Pode comprar um pacote de arroz pra mim?

(Porra, arroz tava no crime, pacote de 5 kg do mais barato 30 conto. 1 kg quase dez.) 

- Cara, não vai ter como, foi mal.
- E esse óleo?
(Não costumava usar óleo. Quanto era? De repente até ajuda sim)
- Quanto é?
- Tá aqui que é 9 e cinquenta
- Putz cara, não consigo mesmo não, mas boa sorte
(Ele deve ouvir isso o dia inteiro. Mas ela realmente não tinha como).
- Cê quer uma bolacha, algo assim?
- Você acha que eu vivo de bolacha porque sou pobre?
(Ela fica confusa. Tentou ajudar, mas não sabe se fez uma boa abordagem. Talvez ele também não tenha dado uma boa resposta. Sei lá, faz uns anos que sempre no mercado tá todo mundo nervoso.)

Vai pro outro corredor. Não pegou nem metade das coisas e o dinheiro já quase deu. Porra! O papel higiênico. Vai faltar três reais e cinquenta e dois centavos. Merda.
Chega sua vez na fila. Vai olhando o computador passando os produtos e aumentando a facada. Ficou olhando como se a matemática ali pudesse ser diferente. Mas não era não.
Olha na carteira digital. Era só quarenta mesmo. Olha na outra, que sabia que já tinha esvaziado, mas olhou porque vai que né? Vai que. O "vai que" é o último que morre.
- Vou pagar no QR code. No Caixa Tem. Mas só tô com 40, pode ser?

Seu Ricardo olhou até com naturalidade pra pergunta. 
- Bom, cê mora aqui perto, né? Tudo bem. Mas pode ser assim, amanhã cê me paga?
- Pode sim (pode? Ia receber de novo só na próxima segunda-feira.)
- Então tá bom.  

Passou uma semana evitando passar na frente do seu Ricardo. Seu Ricardo tava evitando responder o whatsapp do locador do imóvel. O locador tava evitando pagar a pensão que devia. Ela, depois que saiu do mercado lembrou: esqueceu do remédio de pressão. E o mendigo, ainda tava tentando comprar o arroz.

4 comentários:

  1. Esquecer o remédio de pressão leva a crer que pode controlar melhor a pressão da pouca grana (por ter 'dinheiro eletrônico', morar perto), enquanto o mendigo se lasca, pois precisa de cédulas e moedas e vive nas ruas... depende literalmente da boa vontade de estranhos.

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  2. A DESPEDIDA NA MURETA

    Ele estava ajoelhado perto da mureta da minha casa como se estivesse diante do Muro das Lamentações. Parecia que rezava, mexendo os lábios numa ladainha inaudível. Começou a chorar de repente, tentando esconder as lágrimas com com o antebraço.
    Toquei as suas costas e perguntei:
    - Precisa de ajuda?
    Arfando, respondeu:
    - Não.
    - O que está fazendo?
    - Estou me despedindo.
    - De quem?
    - Do murinho.
    Não entendi o que ele quis dizer, mas segui a lógica das perguntas:
    - Por quê?
    - Porque ele vai crescer depressa.
    - Como assim?
    - Não acha triste que o destino dos muros seja subir?
    - Sei lá.
    - E quanto mais altos, mais separam os dois lados.
    Eu não estava entendendo nada.
    - Qual é a sua profissão?
    - Sou pedreiro.
    - Ah.
    "Preciso de um muro bem alto", foi a última coisa que passou pela minha cabeça antes de contratá-lo.
    - E o que faz da vida, doutor?
    - Sou dinamiteiro.

    Por Cleber Vinícius.

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  3. "O artista anima sua obra como a criança faz com seu brinquedo". (Patti Smith)

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  4. Se não para de chegar contas,
    faz que nem os boletos
    Sempre vença!

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Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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