terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Para os meus textos

 Vocês são os filhos que pari para me ampararem na velhice e nos maus momentos. Vocês envelheceram e foram amadurecendo. Lembro de vocês pequenos, infantis, com a letra arredondada e afundada, desenhada no espaço de duas linhas de um caderno espiral brochura, buscando os primeiros finais e os primeiros sonhos. Lembro da folha da primeira história que escrevi para a escola. Mas lembro da folha pautada, do lápis mal apontado, como uma foto, na minha cabeça. Vocês tinham a visão da alegria que foi para mim materializar as primeiras das tantas linhas que sempre abarrotaram minha cabeça. Meus olhos olhavam aquelas letras ainda com luz, antes da vida desligar esse interruptor. 

Mas eu sempre tive aquela semente: aquela que não pode ser escolhida, aquela que não faz parte. 

E assim vocês foram crescendo, rebeldes como corcéis, atravessando as linhas, as letras inclinando, indo para desde o sulfite até guardanapos, papéis higiênicos, carteiras, até meu próprio corpo. Como inspirada por Calíope, como embreagada por Dionísio. Vocês começaram com algumas piadas sem graça, tentando criar um estilo, quando se encontraram em alguns pontos que sempre me foram inerentes: A soturnez, que me fazia companhia na insônia, que me fazia ir escondido do quarto para a sala na infância para ver filmes e escrever. E de uma madrugada, como essa, surgiu o Breu. Também a minha estranheza de personalidade e raciocínio, que então se tornara convicta. O niilismo, que me segurava a mão quando eu via toda a civilização virar um banco de areia e vagar sem destino ao meu redor. E o gosto pelo aleatório. Ah, isso. O aleatório. O absurdo de tudo. A descoberta do surrealismo, do dadaísmo, da guerra, o centro da cidade de São Paulo, a insanidade do metal extremo. A descrença em um destino, a irreverência. Eu me apaixonei de uma forma profunda e violenta pela capacidade de conseguir extrair da criação e da memória as ideias mais caóticas que eu poderia parir. E eu pari. Muitos de vocês. 

Claro que eu só poderia ser uma mãe atroz, muitos foram perdidos e descartados. Dos mais terríveis até os mais belos. A maioria batidos nos bolsos de calças jeans cheirando a cerveja dentro de máquinas de lavar.

Escrevi muitos de vocês sozinha nas madrugadas, em calçadas, em bares, em momentos tão nossos. Vocês não tem pai. Vocês, como Atena, nasceram de uma dor de cabeça initerrupta e, conforme as situações foram me golpeando, foram saindo seus braços, pernas, tronco e cabeça de dentro do meu crânio. O sêmen foi exclusivamente a minha necessidade de vocês existirem. A quase totalidade de vocês não foram direcionados a ninguém. Vocês são de mim e para mim.

A intransigência de vocês foi ficando cada vez mais marítima. Afundando. Fomos juntos ao centro da terra. Fomos juntos ao inferno. A letra ficou instável, as ideias cada vez mais pesadas e sufocantes. Tentando entender, tentando descriptografar nós na garganta e gritos que só foram percebidos pelos ouvidos dos meus orgãos internos. Um ódio tão intenso que quase me comeu viva, aquele instinto assassino e aquela instrospecção que me tirou o sangue. Lembram? Eu lembro. Algumas palavras de vocês estão marcadas em mim como se fossem feitas com ferro quente.

Boa parte dos que ainda me restam estão aqui, nessa tela preta. Eu lembro das circuntâncias em que escrevi a maioria de vocês. Então me sooam como se fossem um diário. Minha memória funciona de uma forma estranha e não entendo a seleção que ela faz. Não entendo bem o tempo, o "quando" é complicado para mim determinar. Uma mãe que não lembra do aniversário de seus filhos. O "onde" às vezes também. Mas o porquê, eu sempre lembro. Porque é essa região aérea, mental, que sempre foi nossa casa. 

Hoje é um dia terrível para mim. E como de hábito, vim recorrer a minha prole: ver o que cada uma tinha a dizer, analisar novamente como foi a construção de vocês. Vocês e a música são as minhas companhias mais duradouras. Vocês e você, que escrevo nesse exato momento, acabam de acalmar meus nervos. Mas vamos com calma: parece que voltamos a zona abissal do oceano. Só que dessa vez, eu já te conheço. 

E tenho melhor noção das letras que preciso para criar essa nova embarcação, que me abrigará durante o dilúvio. Obrigada pela sua sinceridade e principalmente pela confiança que sempre depositei em vocês. Não usei meias palavras, apenas palavras inteiras e verdadeiras, por mais que elas eternizassem algo com quem lutei. Obrigada por toda essa violência. Obrigada, pela confiança. Voltei a produção aos mais horrendos da prole.

2 comentários:

  1. Seus textos não envelhecem.
    E as sementes dão à luz sementes.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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