domingo, 21 de janeiro de 2018

Fly

nove da manhã. Como todos os dias, o que acordou foi o sol irradiando atrás da cortina bege. Ainda não havia aberto os olhos, movimentava o globo ocular dentro das palpebras. Fazia isso rápido, muito rápido. O sol incomodava de uma maneira que não era normal.
Abre os olhos. Sua retina pegou fogo assim que olhou a realidade. E a realidade era essa: seus móveis estavam no mesmo lugar. Seu ventilador estava confortavelmente ligado, como havia deixado. Seus cds fora das caixas. Seu relógio em funcionamento, o tempo passando como antes. Ela, ali, ainda como antes.
Um incômodo. Alguém a chama. Mais de uma vez. De repente se pegunta o que a acordou, realmente. Fica estática, embaixo do cobertor. O dia fervia lá fora.

Os cds estão fora das caixas?

Queria conferir, colocar algo para tocar. Mas não conseguia se levantar. Chamam mais uma vez. O sol se apaga. Talvez uma nuvem bem espessa. Mas a nuvem estava dentro do quarto. Estava?
Era preta e falhada, mas parecia não tão espassa, parecia parte de uma mesma...coisa.

Ouvia seu nome. Seus olhos não paravam de se mover, era cansativo. Tinha muitas coisas a resolver no trabalho. Havia compromissos. Coisas que ainda não havia dito (morte), que ainda não havia feito (morte), que ainda não havia escrito (morte). Que ainda não havia sentido.

Seus pensamentos eram como um fio de saliva de encontro a um banco de areia. Estavam se ressecando. A boca estava branca e o corpo tremia.

NOME!

ouviu bem perto agora o chamado, como um despertador que a acordou, de novo. De que lado ela estava acordando? Ela havia acordado antes?

Tomou um impulso e se levantou da cama. E com ela, no outro cômodo, se levantaram 60 moscas, gordas e lentas, que alçavam vôo e morriam tão logo pegavam altura, tão logo chegavam próximo a porta do seu quarto. Uma a uma, caíam. Algumas viam mais rápido, chegavam mais longe, entravam no quarto; mas também despencavam no chão, tentando bater as asas com violência: mas só conseguiam girar em torno de si mesmas até ficarem

estáticas


Estática. Sentou em sua cama e olhou para aquela cena. Para várias cenas. Viu naquele momento várias coisas das quais sequer se lembra (nome!), quantos dias estava ali? Relógio (nome!) marcava nove e cinco.

O vulto preto corre e passa pela sua mão. Entende que está sendo convidada a ir para algum lugar. O que atrairia tantas moscas? 60 moscas varejeiras gordas a morrer pela casa. O que?

Segura a si mesma e não se sente. O coração descarrilha como uma vida de decepções que de repente, perdem o controle e encontram apenas o vazio. Nada pode ajudar agora. Sente que não pode controlar aquilo. Sua mente não obedece.

(não faz sentido, as moscas, o vultos, as vozes, não está acontecendo isso, preste mais atenção, tente se acalmar, você está se autoimpressionando. feche os olhos, tente se concentrar na sua própria respiração. se impeça de pensar)

NOME!!!

É impossível. Há alguém ali (não tem ninguém aqui), há alguém, está me chamando, está querendo pegar minha mão, elas vieram me buscar, as moscas, só vem assim quando há (morte), cheiro de morte estou morta (você não pode pensar nada morta, você não está morta) porque viriam tantas moscas (há uma explicação, devem ter detetizado o lugar) PORQUE ELAS CHEGAM E MORREM???

CORRE PARA A PORTA, ABRE, NO CORREDOR NÃO HÁ MOSCAS. SÓ AQUI EM CASA, NÃO CONSIGO SAIR (como não consegue, só saia) não consigo sair (dê mais um passo) NÃO POSSO! (SÓ UM PASSO!)
ESTOU MORTA! (respire fundo, se acalme!) MORTA! (JOGUE (NOME!!!) ÁGUA (MORTE!!!!) NA CARA!!!)

Telefone é para emergências (tuuumm)
telefone é para emergências (tuuumm)
telefone é para emergências (tuuumm)
telefone é para emergências (tuuumm)

 me ajuda
 tem alguém aqui
 eu estou viva?
 você está falando comigo?
 não precisa
 eu estou aqui? (ridícula, é claro que você está aqui)
 desculpe, não queria (desligue isso, saia de casa)
 eu estou incomodando (se controle! nada disso está acontecendo)
 EU ESTOU VIVA VOCÊ ESTÁ FALANDO COMIGO? EU ESTOU AQUI???? (PARE COM ISSO!!! PARE DE INCOMODAR AS PESSOAS, NADA DISSO É REAL!!!)

 VOCÊ ESTÁ FALANDO COMIGO?????

Espelho. Cadeira, faca

 Pega a faca e pressiona contra o braço. Com força.
Se eu estiver viva eu posso sentir (morte) eu posso sangrar (nome!) eu posso morrer! (nome!!!! nome!!! nome!!! nome!!! nome!!!)
 Com força
 com força
 com força
 com força

triiiii
triiiii
triiiii
triiiii

 COM FORÇA!
 (TRIIIII)
 COM FORÇA!
 (NOME!)
 COM FORÇA!
 (FIO DE SANGUE)
 COM FORÇA!
  (triiii...)
 FORÇA!
  (...nome...)
 FORÇA!!!!
  (.......morte.......)
 

8 comentários:

  1. Aa moscas do meu jardim decomposto sempre me lembram que somente a morte é uma verdade universal e pontual.

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    Respostas
    1. Não penso em defunto com moscas, penso em coisas doces.

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    2. É possível que se pense em coisas doces também, já que moscas se alimentam também de coisas doces. A dieta das moscas se baseia em fezes, vegetais e animais em decomposição, frutas e também doces. Portanto, associação entre moscas e a morte, ou algo morto e decomposto, é certamente válida.

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    3. A Vida é Doce.

      E amarga.

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  2. https://www.youtube.com/watch?v=NANDNspWDJc

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  3. Oi blog preto
    /vou conversar com o blog preto/
    sempre fujo da tela preta
    e e|a é muito grande
    e nao tenho mais ninguem [com quem conversar]
    e eu tento nao ficar louco

    só a tela preta é real
    a dimensao mais bela
    uma dimensao plana onde o tudo e o nada sao a mesma coisa
    onde o nada é eterno e o tempo se move na direçao do caos

    - eu adoro essa palavra,
    até o som dela é bonito -
    nada

    na dimensao das palavras e das ideias e pensamentos e lembranças e sonhos [e dos contos] e sentimentos

    dimensao plana que projeta o holograma do real

    /quando eu disse "nada",
    foi um gracejo
    eu acho que dentro dela é um dos lugares-coisa mais belo que existe/

    nao sou estupido burro,

    monstro,
    louco que vive com a cabeça em outras dimensoes


    tenho que escrever outra carta atualizando o telefone da emergencia [só fiquei do lado daquele aparelho até esse dia dona blog preto] agora é outro numero

    alface,
    oleo
    estacionamento
    raposa
    braulia
    tudo muito pouco

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  4. Muito bom o texto acima.
    Blog preto conhece blog preto.
    Sabe o que é bom.

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  5. Fly, voar, no breu, no quarto ensolarado e escuro. Moscas se aproveitam do ambiente de quase vivo, meio morto. Levantar? Faltam forças.

    Real? O que é a realidade? Existe a realidade?

    A morte precisa da vida pra existir!

    E quando for ler no bar me convida.



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Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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