domingo, 11 de outubro de 2009

O siso.


Foi lá do alto da janela desmantelada que Sofia o viu passar. Estava, a menina de chinelos de dedo, com os cabelos tão feiamente desarrumados que nem parecia obra do acaso. Apoiou-se melhor na madeira mal pregada da borda da janela e apertou os olhos pra sugar um pouco mais daquela imagem distante, mas tão nítida, que entrava na vila como quem é o último a entrar no trem e quer posse do lugar à janela.
Pressionou tanto a frágil madeira querendo ver um pouco mais que o prego, de tiro, fugiu e quase fez despencar a pobre menina. Vendo que dali não veria nada, saiu do quarto e correu escada a baixo até dar na porta velha que dava pra rua. Correu até mais adiante, desviou das bicicletas, dos carros, pulou um cachorro e quase meteu a cara - que verdade seja dita, mais parecia uma careta - no poste indefeso. Mas enfim, chegou num morro de grama, com as maças do rosto em fogo. Sua saia e seus cabelos começaram a dançar com o vento. A menina dos chinelos de dedo ouviu música e foi atingida por folhas secas. Ouvia, indiferente, uns passos em sua direção.

Ah, era ele. Vinha de contraste ao coração da menina, arrumando os cílios. Viu a pirralha não vendo; mas foi gentil, acenou e sorriu. Sofia destroncou-se todinha. Sorriu de volta, tal qual a criança que era e sem medir esforços soltou aquele sorriso, sem nem se importar com suas cáries no dente do siso. Ele olhou a menina, após ver aquele sorriso, como se acabasse de ver o que de mais repugnante há no universo. Aproximou-se e deixou os olhos alinharem-se. O roxo vivo da retina da menina trimilicou por uns instantes. A boca, entreaberta, foi tomando a cor das bochechas na hora em que sentiu sua cintura quadrada e infantil sendo tomada.
A menina permaneceu inerte; só os olhos moviam seguindo a manga laranja, que deslizava numa paciência inquietante, da cintura para a promessa de seios que havia. Após acaricia-la, deitou-a na grama, tomou seu pescoço e, como um tigre que levanta ofensiva sobre uma ovelha, beijou a boca vermelha de súbito, de brusco, o que serviu de uma espécie de alerta para a menina.
Tentou, com as maozinhas pequenas, empurrar, bater, arranhar. Mas ele a havia prendido, com o braço direto cravado na cintura apertando a mão contra sua coxa e a mão esquerda, puxando-lhe os cabelos. Ela tentava lhe morder os lábios, mas mesmo assim beijou-a mais uma, duas, três vezes, num duelo de sangue.

Até que, por fim, ele conseguiu engoli-la. E no ato, sua boca se abriu de tal forma que ele pode finalmente fazer o que queria; com uma única mordida, ele arrancou seu dente do siso e o engoliu. Levantou-se, retirou as raízes que sujavam sua roupa e, com um sorriso, tirou o pouco de sangue que lhe coloria a cara.

Sofia jamais viu essa cena. Olhava para baixo e tremia quando caiu a lágrima. Lambeu-a.
E, naquele instante, no movimento quadricular do vento, Sofia soube exatamente o que devia fazer.

7 comentários:

  1. mt grande o texto, mas pelo o que eu li é bom! :D

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  2. Muito bom o texto,
    está gostoso de ler, meio ritmado e rimado.
    é impressão minha ou tudo não passou de uma impressão?


    http://arthurmelo92.blogspot.com/

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  3. muito bom o texto, vc tem talento parabens!

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  4. Um desfecho absolutamente surpreendente!!!!!

    Coloquei um novo post no meu blog, com a continuação da história. Quando tiver um tempinho, dá uma passada lá!

    http://diariodeumagarotaemapuros.blogspot.com

    Beijos!

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