segunda-feira, 4 de abril de 2022

Possessão

você não sabe como é estar aqui dentro. você pode tentar escrever essas placas e coloca-las em mim. pode tentar acreditar nelas, tentar usa-las para que, pela mágoa e pelo cansaço, eu me encolha no que você diz. você pode tentar manter o controle dos outros, querer ser um mapa do arbítrio alheio, se mostrar profundamente ofendido por não estar no comando de outra vida. querer se ocultar enquanto quer total exposição do outro, querer arrancar um pedaço sadio da outra pessoa porque arbitrariamente você não o quer ali. você pode tentar possuir alguém que não pode ser possuído. Porque afinal não é algo, é alguém. nem mesmo o animal mais sereno pode ser controlado sem que perca um pouco do seu gosto pela vida. quem dirá os mais selvagens. a lealdade não mora na submissão, você entendeu tudo errado. se você ver algo selvagem demais e conseguir sua confiança, você não pode ter medo. é dali que você terá as reações mais intensas, a proteção mais fervorosa, você estará entre as patas de um leão. mas se você se guiar pelo medo, ao querer controlar pode tentar pela agressividade se fazer ouvir em frases que são diferentes das que você realmente quer dizer e nada disso dará resultados a você. é preciso ser claro, é preciso ser honesto. pela força, você nunca conseguirá. pela mentira e pela acusação, você nunca conseguirá. pelo contrário, cada algema, cada suspeita infundada, cada insinuação, são como um enxame de mosquitos sugando, incomodando, se tornando repulsivo, se tornando um fardo, um problema, um som agudo e irritante que aparece de repente. que não deixa dormir, que não dá repouso a mente do outro. sempre ali uma insinuação, algo que vem discreto mesmo quando não parece ter espaço e se faz presente de forma tão insistente que asfixia, com um gás venenoso que é disparado sem nenhum motivo aparente ou por motivos que não fazem sentido nenhum. Isso não te torna onipresente, isso não te aproxima, isso te torna um inseto, que se afasta com repelente. você pode ter raiva sem que precise ter razão, mas a raiva não nos dá direito sobre os outros, não nos autoriza a quebrar as cancelas daquele espaço coberto pelo nevoeiro ininteligível que são o que o outro sente e pensa. havia mais uma lata de cerveja na geladeira e ela ficou ali, havia recebido uma ligação que não atendeu, havia recebido mensagens que preferiu nem ler. havia sentido um sentimento tão ruim porque estava sendo atacada e era tão injusto, era tão errado que não sabia bem de que ponto começar a refutar, elaborava em sua cabeça linhas e linhas de réplicas que se acabavam na falta de sentido da própria situação. era óbvio que estava errado. você sabe disso, você apenas não liga, apenas quer descarregar algo que sente, apenas quer parar de ter medo, porque não se acha digno, não se acha o bastante. não importa quantas vezes ela tenha demonstrado o oposto. você foi testando os limites como se conquistasse territórios, mas o que estava fazendo era arrasando todo o plantio, queimando as casas e a comida que existia ali. todas aquelas palavras eram uma explicação lógica sobre algo que não tinha lógica nenhuma. não conseguiu dormir de madrugada, a resposta parecia interminável era interminável o quanto aquilo não deveria estar acontecendo. queria dormir e talvez precisasse conversar um pouco. tudo estava começando a se perder, se arruinar. explodia um pouco a cada dia, de dentro para fora. foi vendo suas conquistas começarem a se dissolver. precisava de força porque estava indignada demais para se concentrar em qualquer coisa. não fazia sentido. a realidade começava a ganhar cores estranhas, fios de consciência estranhos, aquilo se repetindo como uma tragédia e tudo tão imperdoável que continuar a briga era apenas tolo demais. essa foi uma guerra que você perdeu para você mesmo.

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