quarta-feira, 9 de março de 2022

Positivo

Finalmente ele chegou da lan house.
- E a resposta, foi negativa?
- Foi, mãe. Mas vai dar certo, a gente continua tentando.

Negativo. De novo. Estava tentando arrumar emprego fazia tempo e não conseguiu nada além de uns bicos. Não tinha muito tempo, também. Precisava cuidar do filho. Pandemia, escola fechada. O marido havia metido o pé há dois meses e nunca mais apareceu. Até pagava a pensão, mas não era muito. Marcinho estava ficando grandinho, começando a ter vontades. E era foda sempre dizer para ele o negativo que sempre diziam pra ela.
Mas não tinha jeito, o caminho era continuar tentando. As coisas não podem dar errado sempre, assim como não podem dar certo sempre. Repetia essa frase na cabeça como se fosse um mantra. Gostava de ver filme na televisãozinha de tubo. Mas naquele dia sorriu pro filho e chamou ele pra brincar de bola. Tentava sempre não transparecer para ele que as coisas não iam muito bem.
Quando começaram a correr, se sentiu fraca. Não andava comendo e nem dormindo direito. Muitas contas, o menino crescia, precisava de roupas novas, tava tudo o olho da cara no mercado. Era maldade deixar ele sempre em casa, mas quando saíam ele queria as coisas. Embora que ela também queria as coisas quando saía. Carne mesmo, não via fazia mais de ano. 
Chutou a primeira bola, a visão deu uma falhada. Devia ser o sol. No quarto chute, só caiu e apagou.
Acordou no hospital.
- Positivo - disse o médico
Ela deu um sorriso travado pela novidade da palavra, mas ao mesmo tempo sentiu um arrepio na espinha como se tivesse levado um choque. 4 meses.
Não podia. Não podia de jeito nenhum. Não tinha mais ninguém, só o filho e a pensão magra. Não tinha nem o que vender, não tinha trabalho, não tinha psicológico, não tinha nem nutriente no corpo. Nem tinha máscara obrigatória pra entrar nos estabelecimentos, as que tinha emprestou pro filho e ele nunca lembrava onde colocava. Sentia que não poder sequer entrar em uma loja representava alguma indigência. Às vezes um vizinho olhava estranho. Dava um jeito de fazer alguma com uma roupa velha, mas o filho não gostava. Dizia que era feio. Era verdade que não era a melhor das costureiras, ficava meio desbeiçada mesmo. Precisaria caso chamassem pra trabalho, também. Fora isso, tava todo mundo ficando doente. Ficou sabendo que a esposa do seu Antônio da mercearia tava internada ruim à beça. Teve uma semana que ficou bem resfriada toda mole, tentou fazer o teste do Covid mas era o olho da cara, 100 conto na farmácia da rua. Foi no postinho, pegou uma fila gigante e quando chegou sua vez falaram pra tomar bastante líquido, que tinha pouco teste, se não melhorasse em uma semana era pra voltar. Pelo menos ganhou um potinho de álcool em gel. No início dessa confusão toda, tavam vendendo aquele troço como se fosse ouro. Lembra também que disseram no inicio que era só pra quem tava doente usar máscara, depois era todo mundo. A impressão que tinha é que a coisa tava feia e ninguém sabia direito como lidar com aquilo. Mas o que sempre foi unanimidade é que tinha que evitar os outros. Pedir comida por delivery. Era fácil entrar no ramo de entregas de aplicativo, não tinha muita burocracia, quase nenhum vínculo com a empresa. Tinham feito uma reforma trabalhista que deixava as pessoas trabalharem em lugares diferentes, por horas ou esporadicamente de acordo com a possibilidade do trabalhador entendeu que era alguma coisa assim. Mas parece não tinha direito a mais nada que não fosse o uniforme e o pagamento das horas trabalhadas. Você era seu próprio chefe, fazia sua própria carga horária muitas vezes. Esse pessoal que entrou nessa tava trabalhando muito, parece que dava um dinheiro se trabalhasse umas 12, 14 horas por dia. Mas diziam que tinha que ser perto de casa, porque os restaurantes não gostavam que os entregadores tomassem água e usassem o banheiro. Queria muito entrar nesse ramo, mas precisava de uma bicicleta, além de ter alguém com quem deixar o filho. Se conhecesse, podia também ter dito ao filho quando ele perguntou sobre o filme que queria ver "Ladrões de Bicicleta". 
O negócio é que era pra evitar a rua, mas ela precisava sair e trabalhar a todo custo, mais que nunca. E agora estava ali, de cama, com o médico dizendo parabéns. Não podia. Voltou pra casa com um dos positivos mais aterrorizantes do mundo.
Ligou para o ex-marido. Ele ouviu, mas não queria ouvir. Nem respirou. Disse que não tinha. E não tinha mesmo. Havia também uma pandemia de boletos no mundo. Mas claro, tinha mais condições de ajudar do que qualquer outra pessoa. Se quisesse, poderia conseguir. Mas disse que ia ver, sem a menor intenção de fazer isso. Sabia que ela ia conseguir se virar sozinha de alguma forma. E ela sentiu essa confiança na voz dele. 
Desligou sem fazer caso. 
Sentou na cadeira e pensou. Uma amiga falou que fez e foi horrível. Tinha contato. Era caro. Porra, eu não tenho nem uma cama pra vender, ela pensava. Dormia com o filho em um colchonete, num quartinho pequeno. As únicas coisas de valor que tinha era a geladeira e o fogão. Teria que vender um dos dois o quanto antes. Optou pelo fogão. Limpou bem, pegou uma caneta preta para tampar alguns riscados, esfregou tudo até parecer um brilho. 
Foi na casa da amiga. Pareceu bem estranho que ela, tendo passado pela mesma coisa, pareceu julga-la pela situação. Mas entrou em contato. Demoraria 2 semanas. 500 pau. Ela confirmou, sem ter esse dinheiro. Tinha por aí de 50 para manter a ela e o filho até o fim do mês.
Voltou pra casa, sentou na cadeira. Começou a limpar a geladeira. Usando branquinho, para corrigir um risco aqui e outro ali. Tacou a placa no portão, já que não tinha celular pra anunciar no OLX: "Geladeira e Fogão, 600 reais. Bom estado". Iam chorar, melhor colocar um pouco mais do que precisava (essa frase ficou tragicômica), pra pelo menos conseguir comprar comida depois. Pra armazenar e preparar, ia ter que pedir novamente pra vizinha. Não dá nem tempo de calcular muito se vai dar certo ou não, só fazer.
Preço de exploração atrai gente rápido. E claro, pedindo desconto. Antes das duas semanas conseguiu o comprador. Endureceu como se não precisasse tanto do dinheiro. Era pra comprar uma melhor, disse ela. Conseguiu vender por R$550, antes das duas semanas. Ficou feliz em ir ao mercado. Pegou 50 só de comida não-perecível, já que tava sem a geladeira. 
Foi rápido para pegar o remédio. A amiga deu algumas instruções, disse que era bom que alguém estivesse com ela no dia que tomasse. Ela mesma não poderia ir, por causa do trabalho. Já tinha faltado dia e não podia mais se complicar. Não estava mentindo, era isso mesmo. Mas também não estava com vontade de ajudar, então deu certo. Ela podia argumentar sobre o dia de folga, mas preferiu parecer compreensiva.
Não tinha ninguém para chamar, não tinha tempo, então ia ser agora. Chegou em casa e botou o RG no bolso, por precaução. Disse pro filho que ela estava com um sono muito forte e, se ela dormisse, só um adulto poderia acordar. Era pra ele chamar qualquer um na rua como fez da outra vez, porque ela não queria perder um filme que ia passar de noite. Ele perguntou qual era o filme, mas ela não respondeu. Não conseguia pensar em nada. 
Pegou o copo d'agua, abriu a caixa do remédio e tacou pra dentro. Engoliu e sentiu um alívio. Talvez nem acontecesse nada demais, Maria era fresca pra caralho, nem deve ter doído tanto assim.
Mas em alguns minutos percebeu que aquela porra era forte. Não estava sentindo dor, mas sentia algo mexer com o seu corpo. Não estava normal. Era como se seus instintos estivessem girando uma sirene vermelha e nem havia acontecido nada ainda. 
Passaram algumas horas. De repente, sentiu algo escorrer pelas pernas, correu para o banheiro. Sentou no vaso. Sangue. Veio meio inibido, até que sentiu algo estourar. A bolsa. E aí veio muito. Mas era muito sangue. Vermelho, espesso, correndo de sua vagina como um corcel indomável solto em um campo num sol da tarde. Mal teve tempo de abaixar as calças. Precisava fechar a porta antes que o filho passasse por ali, deu um impulso para alcançar a maçaneta e acabou caindo no chão com a dor fechou os olhos puxou a gola da camiseta e mordeu para esperar passar sangue colava na sua bocheca grudada no azulejo um cheiro forte orgânico um cheiro forte de morte infestando grudando ela colada na porta servindo de escudo para o sangue não passar para fora do banheiro cansada será que é assim mesmo não posso apagar não posso apagar começou a apertar o braço bem forte e a se levantar na força do desespero, enquanto o rio vermelho não demostrava querer parar. Não tem certeza de quanto tempo durou aquilo. Suor escorrendo pelo rosto, o corpo fraco, ela estava matando um pouco de si mesma, um suicídio controlado e tentando ficar firme. Sempre viu nos filmes alguém dizendo para não dormir nessas situações. Então iria aguentar firme. Deu um gemido ou outro, mas não gritou. Tal qual a Jessica Alba no Sin City. 
A corredeira foi parando. Os dentes foram ficando menos rígidos. e entao caiu. caiu, era isso? Havia tanto sangue no vaso que ele mesmo deu a descarga. "Não consegui ver, era isso? Havia acabado?" Sentiu algo cair, tinha certeza. "Como se fosse uma...pedra?" Uma pedra que havia tirado do meio do caminho, pensou. Em seguida pensou se deveria ter pensado isso. Não tinha controle dos pensamentos. Estava com medo daquele sangue todo, de tantos problemas, daquela dor que estava abandonando seu corpo depois daquele terremoto todo. Estava com medo do filho ter percebido alguma coisa, estava com medo de não ter mais geladeira e fogão, com medo de colocar mais uma pessoa no mundo e não conseguir sobreviver mais, já não sabia como é que estava conseguindo, faz tempo que já funcionava no piloto automático. Colocou a responsabilidade em si mesma, devia ter se prevenido melhor. E a dor foi virando uma culpa enorme e solitária, como se ela tivesse feito aquilo sozinha. Nem lembrou de responsabilizar ninguém, mas se lembrasse, lembraria que foi insistência do ex fazer algumas coisas desprotegidos "somos casados, que mal tem?". Era ela ali, no sangue e com uma pedra no fundo do vaso. Enquanto isso, nesse exato momento em outro estado, seu ex-marido terminava de fazer a janta e se preparava para assistir o jogo de quarta. Pensou em abrir uma cervejinha, mas melhor não. "Começa na primeira e depois não tem fim, melhor se preparar para o trabalho amanhã. O camarãozinho fritinho com um refri já tá de boa". De leve, na semana passada havia pensado sobre a ligação da ex-mulher, mas sabia que ela ia dar um jeito. "Se seria ruim pra mim pagar outra pensão, pra ela ia ser pior, então ela vai ter que se virar. Melhor eu nem ligar para não sobrar para mim, quando estiver resolvido ela liga. Se ela não ligar em um mês, eu vejo o que faço".
A dor dela foi passando. Muito lentamente, ligou o chuveiro para lavar a si mesma e ao banheiro. Viu que o RG havia caído no meio do sangue todo. Demorou bastante ali. Quando saiu, passou pelo espelho. Deveria olhar, ver se não tinha mancha. Mas não conseguiu. Não queria se olhar.

Passou um mês. Dificuldades extremas e ela não estava bem. A vizinha deixou ela usar seus eletrodomésticos, mas ficava no ar aquele sentimento de que estava sendo incoveniente. Ela não era rude, mas também não era simpática. Abria o portão sem cumprimentar, olhava de soslaio, observava se ela não estava retirando alguma coisa dela da geladeira. Às vezes dividia o almoço, mas ainda naquela atmosfera de piedade, que faz porque se sente superior. Se ouvia a geladeira abrir, olhava imediatamente. Olhava as mãos dela na hora que ela saía da casa. Não deixava ela usar o banheiro ali, dizia que tava quebrado. Só era recebida na cozinha. Às vezes mandava um bolinho pro Marcinho. Às vezes dava alguma roupa velha do filho. Sentia que as outras pessoas da vizinhança estavam olhando diferente para ela. A máscara desbeiçada devia colaborar. Falava para ir no mercado fazer as compras pra ela, mas não agradecia. Perguntava se tava tudo certo, os produtos e o troco e aí ela fazia um positivo. Mas ela achava que não tinha problema, afinal ela acabava ajudando muito. Quando conversavam brevemente, corrigia sua forma de falar e ironizava seu desleixo na aparência. Ironizava sua forma de comer. Mas de um jeito suave, como quem puxa assunto para quebrar o gelo, quase que brincando. Tinha que aguentar pelo filho, mas tinha que aguentar mais ainda era que sentia não raro dores fortes demais, que vinham e iam. Talvez fosse melhor ir no médico. Mas ela fez algo que não podia fazer, então será que seria atendida?
Numa das idas a geladeira, a vizinha resolveu conversar. Estava passando por um problema no trabalho, uma outra funcionária estava tentando tomar seu lugar. Falou sobre isso por horas, estava transtornada, xingou a rodo e depois se sentiu melhor. E ela sentia muita dor, mas ouviu as queixas e teve tempo de comer um pouco mais também. Ao se sentir aliviada após desabafar, a vizinha Bruna olhou com algum carinho para Joana. Deu um abraço nela. Cortou uma fatia generosa da torta para ela levar. Falou algo sobre chip em vacinas, que não devia ter se vacinado e vacinado Marcinho. Disse que Joana era boa pessoa, que fez o certo, não tinha condições de ter outro filho e que seu ex-marido era um imprestável, que devia cobrar dele responsabilidades pelo o que aconteceu. Falar da geladeira e do fogão. E de mais algumas coisas para casa, você não está em condição de fazer tudo sozinha e o filho não é só seu. Disse também que essa conversa de ser orgulhosa e dizer que não precisa é furada, você só está isentando ele da responsabilidade, tirando o fardo dele pra colocar em você.
Joana agradeceu. Não conseguia pensar muito sobre o que Bruna falava, na verdade não ouviu direito, estava com muita dor. E nem queria reclamar de nada, estava com sorte, estava levando uma torta maior. Embora pensou levemente que o chip devia ser barato pra ser gastado nela. Teve um estranho sentimento de inserção em cogitar que de alguma forma fazia parte de algo que precisava ser monitorado, que tinha alguma relevância para ter um chip. O filho ainda não havia comido bem naquele dia. Precisava levar a torta para casa, precisava que Bruna se cansasse dela e levantasse da mesa em direção a porta, como sempre fazia quando queria dar a visita por encerrada. Até que ela o fez, mas dessa vez de bom humor. Falou pra voltar amanhã mais cedo pro café. Joana quase em delírio por dentro. Latejava como se levasse golpes de dentro pra fora. Se despediu, agradeceu, deu dois passos na calçada e caiu de testa na rua.

Acordou no hospital. O primeiro pensamento é se a torta havia ficado no chão. O segundo, foi Marcinho. Abriu os olhos devagar. Estava tomando soro. O terceiro pensamento foi ter ficado satisfeita em ter desmaiado, poupou a chateação que ia ser tentar se consultar sem o RG. A médica entrou, muito prática. Um par de olhos sem emoção acima da máscara hospitalar. Falou sobre o aborto, sublinhou que é crime, perguntou como foi, quanto tempo fazia e como foram as reações. Com a mecanicidade de quem pergunta já sabendo o que vai ouvir de resposta, já emendou sem sutileza "uma parte está aí ainda".
"Uma... parte? Mas sentiu que havia caído, parte?" Ficou tentando pensar em que parte e, em seguida, seu pensamento foi para o todo que estava sem a parte. A médica continuou: "Positivo, uma parte. Está com você faz mais de um mês, necrosou, você vai precisar fazer uma cirurgia de emergência. Vai ficar quatro dias aqui. A cirurgia correndo bem, você vai ficar em observação e vou receitar remédios para a recuperação. Foi uma agressão muito forte, você chegou no hospital no limite. Fique calma e vamos fazer todo o possível aqui." 
Foi para a cirurgia. Sentia que nem a dor, nem o medo, nem os pensamentos podiam trazer alguma emoção. Estava desconectada da realidade. Estavam ali abrindo. Nem sabia se tinha tomado anestesia ou não. Alguém falou alguma coisa, mas não prestou atenção. Só estava ali, tinha que estar, desejava de todo o coração que resolvesse, mas tinha plena consciência de que não tinha o controle de nada ali. Só foi existindo. Quando terminou, ficou mais dois dias no hospital. Não tiraram a parte que ficou, o corpo expulsaria sozinho em breve, disseram. E você terá que voltar assim que isso acontecer.
Estar no hospital, para ela, era maravilhoso. Silencioso, a comida não era ruim, eram três refeições por dia e sucos em intervalos diferentes. Estar internada melhorou um pouco seu estado geral. Perguntou assim que pode do filho, se alguém havia dito algo, se alguém procurou por ela. A enfermeira disse que Bruna pediu para avisar que estaria com Marcinho. Respirou um pouco e comeu, feliz, um pedaço do filé de frango e olhou para a janela da onde vinha um raio de sol fraquinho e quente na medida certa.
Saiu do hospital e foi buscar o filho. Bruna foi rápida em passar o menino pelo portão. E disse que o filho com Marcinho não se deram muito bem. "Briga de criança, você sabe, não pode deixar criança junto muito tempo que sai confusão". Joana só queria chegar em casa. Pensou vagamente naquele pedaço de torta, enquanto calculava mentalmente o quanto de comida tinha ainda em casa. Bruna deu um pote com um pouco do almoço e foi fechando o portão. Assim que chegou, deu falta do pacote de arroz. Marcinho contou: ela levou mãe, disse que o dela tinha acabado, arroz tá muito caro. E foi aí que reparou que o braço do menino estava com alguns hematomas. Pegou na mão do filho e pediu para ele contar o que havia acontecido, foi caminhando com ele até o colchonete. Abraçou o menino e escorreu uma lágrima em cima do cabelo dele, enquanto ele falava. Ela estava exausta e não conseguiu ouvir bem a história, a voz dele foi embalando o seu sono. Sentia como se fosse a Park So-dam, na cena do alagamento de "Parasita". Adormeceu, com um Marcinho triste nos braços. 
Passaram alguns dias. Estava sentindo a dor no colo se intensificar. Sabia que tinha algo por vir e veio. Sentiu correr por dentro da calça. Parecia um deja vú, mas com uma dor um pouco menos intensa. Talvez finalmente tenha realmente respirado em todos esses dias. Reconheceu na diminuição o fim daquela situação. Era o fim, tudo ia voltar ao normal, na medida do possível. Estava se esforçando para não pensar demais a respeito da situação, desde o início. Não podia se abalar. E estava acabando. Sentia o sangue sair mais contido no vaso, a dor atenuando. Saía tudo, sangue, urina, merda, tudo de uma vez, aos poucos. O corpo estava se limpando. Até que chegou no fim. Pegou o papel para se higienizar e, quando passou, sentiu algo ali. No caminho entre levar o papel de sua vagina para o lixo, viu: um pequeno corpinho vermelho escuro, sem um olho e sem uma parte da cabeça, com o pescoço virado em um ângulo estranho, uma das mãos travadas para fora. Ela olhou de uma forma tão profunda que aquela imagem se tatuou de forma violenta na sua memória. A mão começou a tremer, Marcinho bateu na porta "Manhê, quero usar o banheiro, a senhora vai demorar?" ela se assustou e o corpinho caiu no vaso cheio de sangue e merda. Marcinho foi abrindo a porta se cortorcendo com a mão na virilha, no reflexo para que ele não visse o que estava acontecendo Joana deu a descarga. Ele notou o sangue: "a senhora está bem?" Ela disse: sim, sim, chama menstruação isso, um dia te explico melhor filho. A mãe limpa amanhã tá, estou muito cansada, tente não encostar tá bom? Ele responde: "a senhora agora vive cansada, não fala mais comigo..." 

a voz dele foi ficando mais baixa. Ela sequer terminou de se limpar. Suava frio. Deitou no colchonete e disse para si mesma: você não pode pensar. não pense. não pense. se concentre no cansaço. não pense.

E dormiu, com um sorriso leve no rosto.

Um comentário:

Olá. Você, sendo você mesmo, não é bem vindo aqui. Mas se você for qualquer outra pessoa, sente-se no chão e coma uma xícara de café.

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