Estreou um filme novo. A atriz principal era belíssima e parece que o filme era bom. Aquilo ia pegar. Já foi olhando o orçamento do mês: afinal, aquela mulher era muito diferente dela mesma. O cabelo era maior, o olho era mais escuro. Fazia uns quatro meses que aquela atriz loira do cabelo no ombro era o momento e que tinha feito todos os procedimentos para ter o rosto idêntico ao dela, como todas as outras mulheres. Mas parecia fazer muito tempo. Nem lembrava o nome da atriz, inclusive.
Essa de agora, Milene Denueve, tinha as bochechas mais cheias. A anterior tinha um rosto mais marcado e cadavérico. Havia se recuperado realmente bem de retirar as bochechas não fazia nem duas semanas.
Ah, mas ia esperar mais um pouco antes de fazer uma nova cirurgia. Ia ficar um pouco fora de moda, mas ela não era como essas outras desesperadas aficcionadas por tendências. E também havia perdido o emprego a pouco tempo. Ia curtir um pouco mais a nova aparência, depois entrava na faca de novo. Doía, mas era sempre recompensador. Sua imagem diz quem você é, todo mundo dizia isso.
A amiga mandou um holograma, com a foto de Milene. Era realmente bonita. Um novo recorte de rosto, nunca tinha visto. Diziam que com ele era possível respirar 30% melhor e mais um monte de outros benefícios que não conseguiu decorar, mas lembrava que eram vários. Ficou ansiosa. A colega disse que tentou combinar de marcar a clínica para o dia seguinte, mas não dava. Tudo lotado, não daria para adqurir a nova face na estréia do filme. Mas uns dias depois, ainda tava em tempo.
Foram ao cinema ver a estréia. Todas as mulheres já estavam com o rosto de Milene. Era um ambiente lindo, pensava. Como eram graciosas. Mas olhavam para ela, desatualizada, com desdém. Coitada, suburbana, pensavam. Embora que algumas ali estavam totalmente endividadas, mas já tinham a nova estética no rosto.
Os meses passaram. O dinheiro continuava muito curto. Não podia abrir mão das coisas básicas da casa por isso, mas já estava sentindo algumas retaliações. Sentiu que ter aparência antiga não agradava na entrevista de emprego, passava uma imagem de desleixo, de fracasso, de caricata. Nos restaurantes e bares, também. A família olhava estranho. Os amigos pararam de convidar para reuniões.
Mas aí que passaram uns meses e saiu uma série. Ficção científica. Diziam que era a melhor série de todos os tempos. A personagem principal era uma alien, com uma pele avermelhada com riscas brancas em relevo, não tinha um olho. Era muito bonita. Aparência inovadora, a frente do seu tempo, diziam. Ousada. Aquela anatomia prevenia até alguns tipos de câncer, diziam. E liberava mais serotonina. Gerou polêmica, os médicos se recusavam a fazer o procedimento, foi proibido, era muito arriscado. Todos em polvorosa. Era o item de luxo a ser alcançado.
Havia passado meses sem conseguir um trabalho por conta do seu rosto ultrapassado. Precisava mudar isso. Então, elaborou um plano detalhado, traçou antes o corpo, mediu, chamou a amiga e pegou um bisturi. Não tinha anestesia, tudo com esse efeito era caríssimo em 2049. Se cortou em várias tiras, do rosto ao centro da barriga, como a personagem. Pediu que a amiga esfregasse seu corpo com palha de aço em determinada intensidade, para criar o mesmo efeito das linhas no corpo da atriz. Ela gritava de dor. A amiga continuava com a mão firme e dizia que doía, normal, mas que ela devia focar no resultado final. Era o combinado que, no fim, jogasse vinagre, para cicatrizar bem e as linhas ficarem salientes e não tão uniformes. Jogou. Ela deu um grito muito agudo e curto, em seguida desmaiou. Quando acordou, achou que já estaria tudo pronto, mas faltava o olho. A amiga disse que não conseguiu porque era muito nojento. Ela procurou agir rápido, para acabar logo com aquilo. Enfiou o estilete no olho direito e puxou de uma vez. Ficou alguns minutos tremendo, com o olho pendurado pelo nervo óptico, perto do nariz. Na mesma hora a órbita ocular ficou preta, pela quantidade de sangue que saiu. A amiga foi no banheiro vomitar. Ela continuou tremendo, em uma espécie de transe. Enquanto a pele ainda estivesse úmida pelo sangue, poderia se mexer. Mas a cicatrização seria terrível. Pensava apenas: o pior já foi. Desabou o corpo contra a parede e sua mente se apegou no resultado. A amiga limpou tudo e deu uma injeção para não infeccionar.
Passou um mês. E saiu na rua. Ela era a única que havia feito o procedimento. As pessoas olhavam admiradas, a cumprimentavam. Sentiu o respeito dos familiares voltando. Ela dessa vez estava a frente e isso dava a ela respeito, inteligência, vanguardismo, inovação, status, coragem. Várias características foram atribuídas pelo novo bem que havia conquistado.
Se sentiu respeitada com nunca antes fora por duas semanas. Mas a injeção não adiantou, pegou uma infecção generalizada e morreu de uma forma bem dolorosa.
Ao menos foram poucas pessoas notaram que ela havia retirado o olho errado.